“Quando
a arte se torna maior que a criação
Muitos
a chamam de obra
Quando
a obra se torna maior que o homem
Ela
se chama cidade”
(F.U.R.T.O)
O estêncil é muito encontrado em paredes na cidade. A técnica pode ser feita com tinta ou spray e consiste na utilização de uma prancha com o desenho vazado |
O trecho da música da banda F.U.R.T.O, grupo
que compõe músicas pelas causas urbanas, é mais do que uma evocação à arte das
ruas. É a prova de que ela compõe as cidades. A arte vista da perspectiva dos elementos que
estão no cenário urbano interfere, segundo a própria letra, na grande obra
humana. Mas quando a cidade é a própria arte, alguns detalhes que compõem sua
magnitude são ofuscados pela sua imensidão. Estes detalhes são intervenções
urbanas.
Intervenções Urbanas é um termo que possui em sua origem a explicação para uma visão de mundo que
interpela a construção do eixo urbano. Apesar de em cidades do interior, como
São Borja, esta constatação de urbanidade não ser tão grande quando comparada
aos grandes centros, as intervenções de cunho artístico estão presentes no
ambiente. Basta reparar.
Piches, grafites, estêncil, decoração livre,
pinturas e teatro são algumas formas de percepção da arte nas ruas. Atualmente,
diversas dimensões
destas intervenções buscam compor os espaços como forma de inserir um ritual
artístico e excêntrico no inclausurável cotidiano da cidade. Mesmo pessoas que
vivem em trânsito de um grande centro urbano para pequenas localidades percebem
o dinamismo destas intervenções.
Merli Leal, moradora de São Borja e Porto
Alegre, está sempre em função do itinerário da capital rumo ao interior, em
função do seu trabalho. Professora universitária, Merli circula dentre os
principais trechos do centro das duas cidades em função da sua rotina corrida.
Ainda assim, a professora revela que detalhes na composição dos espaços são
coisas que a chamam atenção, pois revelam, de fato, alguma mudança naqueles
locais.
– As intervenções artísticas humanizam,
conferem identidade e socializam o espaço urbano. O grafite, por exemplo, invade
as ruas sem preconceitos artísticos e contribui transformação e democratização
da sociedade – destaca.
Geralmente presente em locais públicos, o grafite
é uma manifestação artística do hip-hop
(da cultura norte-americana) e um dos elementos mais comuns quanto aos tipos de
intervenções urbanas. No Brasil, a arte surgiu na década de 70, quando ganhou
uma versão aportuguesada para o manifesto da palavra pichação, que comparava o
ato do grafitismo ao vandalismo. A prática, por determinação do artigo 65 da Lei nº 9.605,
de 12 de fevereiro de 1998, foi declarada como crime. Até então, a diferença
conceitual entre a prática do grafite e do piche, era o intuito da arte. O
grafite, por exemplo, pode ser feito com diversos materiais que vão desde o spray convencional até o látex – todos
utilizados para a realização de pinturas que buscam valorizar o patrimônio
urbano.
Muitas vezes, os pichadores
utilizam a técnica
como liberdade de expressão
|
Já o piche, consiste na prática de
“conspurcação de edificações ou monumentos urbanos” (Lei Lei nº 9.605/98) com
os sprays ou materiais danosos à superfície
paisagística do local.
Até maio de 2011, ambas as práticas eram
consideradas como crime por se materializarem em locais públicos e privados,
sem o consentimento do proprietário ou responsável, e ainda resultarem da venda
de sprays ilegais para menores de
dezoito anos. Com a promulgação da Lei
nº 12.408/11, porém, apenas o piche foi considerado como crime, já que o
grafite possui em seu intuito a atribuição
da arte para valorizar espaço urbano. Ainda que esta diferenciação entre as
duas práticas só exista no Brasil, o grafite é uma das expressões artísticas mais
visíveis e esteticamente transformadoras dos grandes centros urbanos.
Veja o infográfico sobre a história
do grafite e curiosidades da sua chegada ao Brasil:
A
arte nas ruas pelas mãos de um grafiteiro
Ao sair de Porto Alegre, Arielson de Deus, veio
para São Borja sem se desligar da arte. O grafiteiro, que desde os 13 anos tem
contato com desenhos e pinturas, foi sendo influenciado pela cultura underground, pelo Skate e pelo hardcore -
elementos que, para ele, compõem a identidade das ruas. Para o grafiteiro,
apesar dos anos 70 para cá a quantidade de pessoas que fazem grafite ter
aumentando, o preconceito com a prática ainda existe.
– Nada mudou. As pessoas ainda continuam taxando
o grafite como vandalismo. O grafite só proporciona melhoras quando está
pronto, quando as pessoas veem que está pronto e o que é – ressalta.
Desde que se popularizou no Brasil, a arte do
grafite tomou uma dimensão cultural capaz de incorporar modas, política e até
referências linguísticas ao próprio “mundo do grafite”.
Algumas gírias como writter (o
artista que pinta); bite (imitar o
estilo de outro grafiteiro); crew (um
grupo de grafiteiros que se reúne para pintar ao mesmo tempo); tag (a assinatura do grafiteiro); toy (o grafiteiro iniciante) e spot (lugar onde é praticado o grafite)
compõem a identidade vocabular dos indivíduos que exercem a prática.
Para quem não entende muito dessas gírias, no
entanto, as referências culturais expressas nos grafites podem revelar a identidade
cultural da qual o grafiteiro é influenciado. Nas ruas de São Borja, por
exemplo, não é difícil encontrar desenhos, símbolos e palavras que remetem às
mensagens contidas em filmes, séries ou bandas musicais.
Assista no vídeo como essas
referências culturais estão presentes no espaço da cidade através da
manifestação do grafite:
[Acessibilidade] Confira a audiodescrição do vídeo:
Comunicação
e intervenções sociais
Apesar de, durante muito tempo, ter sido
encarado pela sociedade enquanto ato de vandalismo, o grafite é um elemento que
instiga estudos e pesquisas em universidades. Tratado como um tipo de mensagem,
a qual os grafiteiros procuram projetar nas ruas, o grafite reflete um
componente crucial que, segundo comunicadores, psicólogos e antropólogos,
permite o conhecimento da sociedade.
Para o especialista em folkcomunicação,
Fábio Corniani, este tipo de intervenção constitui mensagens articuladas no
espaço urbano com o objetivo ínfimo da comunicação entre os indivíduos que as
executam e a sociedade. Segundo Fábio, se a pessoa que está utilizando a arte
urbana tem o objetivo de fazer uma mudança social através da sua mensagem,
conseguindo concluir esta informação, efetivamente aquilo vai acorrer numa modificação.
Mas nem sempre o objetivo da mensagem é uma transformação social.
– Às vezes pode ser uma simples cantada de
amor e este ator não está trabalhando com nenhuma transformação social, mas uma
intervenção de coisas que compõem o espaço – ressalta.
A psicanalista Juliana Rhoden atribui esse
elemento comunicativo da mensagem à necessidade, que principalmente os jovens
possuem, de se abrir para o mundo. Para ela, o imediatismo eufórico da
jovialidade pode justificar o anseio de uma conexão mais evidente e adaptações
no espaço. Juliana aponta que a arte urbana, neste sentido, é uma forma de
canalizar as transformações sociais almejadas.
– Arte possibilita outra relação com o mundo,
uma relação de não repressão. Estas intervenções, para os indivíduos, podem
simbolizar o grito para o mundo, as insatisfações, as posturas políticas e o
desejo de mudanças de cada um – completa.
Mesmo considerando o grafite uma derivação da
arte, nem sempre o seu intuito contempla os valores da sociedade. Conforme
lembra o antropólogo, coordenador do Grupo de Antroplogia Social e Pensamento
Crítico (ASPEC), Daniel Etcheverry, as formas de intervenções, se tratadas como
tal, são livres de julgamento.
As intervenções urbanas são utilizadas por pessoas que desejam sair do anonimato |
Para ele, as formas de intervenções respondem
ao objetivo, ao lugar e, sobretudo, ao resultado que podem alcançar. O
antropólogo destaca a importância de enxergarmos nos indivíduos a mudança
social, uma vez que eles dão vida e espírito às intervenções.
– A alma das intervenções é o que o homem
deseja fazer com ela. Por isso, muitas resistem ao espaço e ao tempo, mas
sempre lembrando à humanidade quem um dia esteve ali, querendo dizer alguma
coisa – explica.
Intervenção
urbana e histórica
A história do grafite sempre esteve inerente
ao espaço onde se projetou. Independente das polêmicas ligadas ao vandalismo ou
criativismo das intervenções urbanas, o grafite sobrevive ao tempo, deixando marcas
e lembranças de uma época. Quem não lembra do Profeta Gentileza e
de suas mensagens de amor e esperança no Viaduto do Caju, no Rio de Janeiro? As
mensagens pintadas na década de 80 marcam uma época de Guerras, violência,
quebra-econômica e fome no país. Hoje, doze anos após sua morte, o pregador é
lembrado como símbolo de mobilização artístico-social, que foi capaz de incluir
no ambiente naturalizado da cidade maravilhosa, suas mensagens de paz.
Em São Paulo, outro grande exemplo de transformadores
urbanos são Os gêmeos.
Os irmãos grafiteiros já realizaram trabalhos monumentais ao transformarem
fachadas de prédios, ruas e muros no centro da maior metrópole da América
Latina. Atualmente reconhecidos em todo o mundo, Os gêmeos também contribuem
para a intervenção social ao driblarem de forma criativa a “poluição visual”
das cidades. Na cidade de São Paulo a Lei municipal nº 14.223/06, mais conhecida como Lei da
Cidade Limpa, já teria impugnado o trabalho dos Gêmeos. A decisão foi retomada,
por sua vez, após a constatação de que a obra tinha o consentimento
da empresa proprietária do prédio.
No podcast, ouça a como os
proprietários de muros particulares atribuem a pichação em São Borja: